A quantidade ganhou à qualidade no que toca a câmaras em telemóveis. O iPhones XS tem duas atrás, assim como o Galaxy S9+. O Huawei Mate 20 tem 3. O Samsung A9, de suposta gama média, tem 4 câmaras na sua traseira. E a julgar pelas mais recentes fugas, a Nokia vai lançar um com 5.
Cada câmara tem a sua diferença. Umas são a preto e branco, para capturar um maior contraste. Outras têm aberturas mais largas, para capturar uma maior paisagem. E algumas têm um zoom ótico maior, como 2x ou 5x. Elas são depois todas usadas em várias combinações possíveis para gerar diferentes resultados. Umas aplicações combinam todos os sensores numa imagem melhorada enquanto que outras alternam sensores por cada modo de disparo.
Em cima desta variedade de sensores, existem agora, também, inteligências artificiais que vão processar toda a informação destes sensores e da própria paisagem a capturar para gerar um melhor resultado final. Diferentes características da imagem são alteradas para que o resultado gerado seja o mais agradável possível. O novo Pixel 3 chega a ter um modo noturno que pega em fotos tiradas à noite, na escuridão, e as processa, alterando-as completamente de uma escura, pouco distinta, para uma muito mais iluminada, como se fosse de dia.
Mas esta quantidade e variedade mascara um problema: a inovação do hardware de câmaras de telemóveis estagnou há muitos anos atrás. E a escolha e controlo que temos hoje em dia sobre as nossas fotos é relativamente menor.

Lançamentos anuais são inimigos da inovação a longo prazo
Todas as marcas têm um ciclo de lançamentos anuais, com o objetivo de maximizar vendas com mais lançamentos. Nestes ciclos anuais, existe pouco tempo para inovação, tendo em conta que 1 ano é muito pouco para modificar e melhorar o que quer que seja. Desenvolver hardware é um processo longo, caro e incerto, enquanto que programar software é rápido e barato. Por estas simples razões, de tempo e dinheiro, os ciclos anuais preferem mudanças ao software do que ao hardware. É mais fácil usar software que interpreta o conteúdo da foto e corrige as suas imperfeições para obter melhores cores do que desenvolver um novo sensor, maior e mais nítido.
Consideremos os múltiplos sensores de imagem usados. Numa cega busca por telemóveis mais finos (que são mais quebradiços, frágeis, com piores baterias, mas mesmo assim vendidos como “melhores”), as marcas evitam colocar sensores de imagem maiores, pois isso implicaria uma espessura do telemóvel maior. Mas ao usar sempre os mesmos pequenos sensores, estão a trair a qualidade de imagem máxima que poderiam obter pois, sensores maiores conseguem captar melhor a luz. Como tal, a imagem gerada seria mais limpa e mais honesta à realidade. No entanto, com as marcas a teimarem com estes sensores mais pequenos, para obterem uma melhor imagem, têm que recorrer a algoritmos digitais ou múltiplos sensores para capturarem para melhor preencherem a foto final.
Mas estes múltiplos sensores, apesar de aparentarem variedade, são na realidade pouco distintos uns dos outros, com aberturas ou zooms fixos. São sensores derivados uns dos outros, na mesma pequenos, para caberem dentro do telemóvel. Aliás, a maior parte das marcas usa os mesmos sensores da Sony. E como são todos similares, a sua implementação não é muito cara, sendo depois usado software para os unir.
Igualmente fácil é a criação de software que artificialmente modifica as imagens. Inteligências artificiais, que são cada vez mais comuns, estão a ser implementadas nas câmaras fotográficas para compilar todos os dados de todos os sensores numa foto mais visualmente agradável, seja ela honesta à realidade ou não. Câmaras de marcas chinesas tendem a suavizar rostos enquanto que algumas ocidentais pecam pela saturação. Estes algoritmos estão a ser usados em outras situações como escolher a melhor foto de uma rajada ou então, como no caso do Pixel 3, transformar a noite em dia. Outro comum uso é o de criar o efeito de profundidade, de desfocagem (bokeh).
No entanto, novamente, com sensores maiores, estes algoritmos seriam desnecessários pois a imagem capturada seria mais rica, e com menos erros e desvios da realidade. Este software serve apenas para simular aquilo que o hardware faria muito mais naturalmente. E, como é óbvio, esta simulação nunca é tão boa como os resultados obtidos via hardware.
E como último pequeno detalhe, consequente da teimosia dos telemóveis finos são os tristes LEDs que se mascaram de flashes. É risório, mas é essa a publicidade usada. Luzes incapazes de preencher um pequeno compartimento são equiparadas a flashes que verdadeiramente iluminam cenas. LEDs com 3 ou 4 temperaturas de brancos diferentes são usados, para tentarem melhor corresponder à cena, mas, no final de contas, continuam a ser pequeníssimos e imensamente débeis no que toca a iluminar o que é preciso. Novamente, com uma espessura maior, um verdadeiro flash poderia facilmente ser incorporado no corpo do telemóvel, resultando numa muitíssimo melhor iluminação noturna, sem ter que recorrer a algoritmos complexos e artificiais.

Já não somos nós que controlamos as fotos, são os algoritmos
Consideremos as restantes tendências da tecnologia de consumo: designs e algoritmos estão a ser usados, não para nos servir, mas para nos influenciar. No caso das câmaras, existe uma tendência similar. Algoritmos estão a ser implementados nas câmaras que escolhem as melhores condições para se obter a melhor foto e tomam essa decisão por nós. Em alguns casos existe algum controlo como quando são tiradas várias fotos de rajada e o algoritmo escolhe a melhor, mas dá-nos a opção de escolhermos outra. Mas em muitos outros casos, esses algoritmos estão a ser executados de maneiras invasivas, onde nós não temos controlo.
No entanto, estes algoritmos nunca deveriam ter sido implementados desta maneira. Estes códigos deviam ser implementados apenas para certificar que a foto tirada faz jus á realidade. As câmaras não deviam escolher por nós como editar as nossas fotos, com mais ou menos suavização ou saturação. Algoritmos como os novos usados no Pixel 3 não deveriam completamente alterar uma foto tirada à noite, fazendo a passar por dia. É uma grande manipulação da mensagem da foto, da sua informação, distorcendo a realidade. De igual modo, telemóveis chineses não deveriam suavizar as suas fotos, para agradar a população asiática, com códigos que clarificam e suavizam a pele.
Se observarmos a restante paisagem tecnológica e as suas tendências, podemos ver que estes algoritmos nas câmaras a decidirem por nós não são novos ou uma surpresa. E que provavelmente vão aumentar ainda mais no seu alcance.

O que existe é bom, o que falta é que é mau
Mas por si só, estes algoritmos não são maus. Quando bem usados e implementados, são imensamente úteis. As câmaras dos telemóveis não são profissionais, nem o devem tentar ser. São para uso mais casual e rápido. E quando estes algoritmos são bem implementados, permitem-nos melhor capturar aqueles importantes momentos com uma melhor qualidade. O problema destes algoritmos é que eles estão a ser implementados em sistemas que não nos permitem grande controlo adicional. Os sensores continuam pequenos e sem maleabilidade, fixos na sua abertura e ampliação. Ao criar uma enorme dependência nestes algoritmos inteligentes, ao colocar a maior parte do investimento no modo automático, cria-se uma submissão nossa a estes algoritmos, onde, se o telemóvel não conseguir com o seu software melhorar a foto, como existem poucas alternativas no hardware, ficamos com uma câmara muito limitada.
Um equilíbrio tem que ser sempre desejado e lutado por. Se colocarmos demasiadas esperanças num só lado da equação, vamos desequilibrar o resultado. Se as marcas colocam demasiada atenção nos algoritmos automáticos, o controlo manual vai ser negligenciado.
É da mais imperativa importância que a tecnologia nunca nos substitua ou o tente. A tecnologia tem o singular papel de nos auxiliar. Algoritmos automáticos são ideais quando usados para nos ajudar a tirar boas fotos. São, no entanto, absolutamente reprováveis quando entram demasiado na nossa esfera criativa e cognitiva. Passamos a ter paisagens com uma pluralidade imensa, mas todas captadas da mesma maneira porque os algoritmos assim o decidiram. Deixamos de ser diferentes e tornamos-mos em meras repetições (embora este comportamento indistinto também esteja relacionado com o efeito das redes sociais, que também usam IAs).
Sim, as câmaras profissionais também têm modos automáticos, mas são vistos como secundários aos manuais. São modos que nos auxiliam em certos aspetos, enquanto modificamos e controlamos outros. Podemos escolher quais ativar e quais desativar. E esses modos automáticos são diferentes das inteligências artificiais usadas nos telemóveis. O modo automático adapta-se à realidade enquanto que as IAs tentam adivinhar a melhor. Nos telemóveis, cada vez mais temos menos escolhas, onde é o software que decide. De um ponto de vista manual, o nosso controlo é mínimo.
Ao negarem por completo a inovação do hardware, as marcas negaram-nos a escolha, pois é através do controlo direto da máquina que nós podemos tirar as fotos que desejarmos. É através desse controlo direto que conseguimos uma liberdade de escolha. Ao insistirem em pequenos sensores sem nenhuma margem de manobra, o controlo que nós temos sobre as nossas fotos é cada vez menor, onde ou tiramos uma foto com o sensor com mais resolução, mas menor abertura, ou tiramos com o sensor com mais zoom, mas menor resolução. As câmaras dos telemóveis estão a ficar cada vez mais restritivas quanto ao nosso uso, mas mais ampliadas no que toca ao software por nós não controlado. Cria-se uma ilusão de controlo onde não há nenhum.
Como consequência, nós ficamos dependentes do telemóvel, e cria-se no consumidor uma atitude de preguiça, de intitulamento, onde é sempre esperado que o telemóvel faça tudo por nós, onde se o telemóvel falhar, é sempre culpa dele e não nossa por não o sabermos usar. É nos dado o peixe, e nunca a cana. Como tal, quando existem problemas, compra-se novo em vez de descobrirmos como tirar melhores fotos. Não existe nenhum incentivo para o consumidor aprender nada, não existe nenhum incentivo para a ambição. Existe apenas o conformismo do modo automático e, se ele não funcionar, é porque o telemóvel é uma “merda”.
Sim, o consumidor pode ser preguiçoso e conformista, mas isso não é razão para as marcas cederem a esse denominador mínimo comum, incentivando-o ainda mais. Não temos que ser todos fotógrafos profissionais, mas também não temos que em todos os aspetos da nossa vida ceder o esforço e a ambição às máquinas. Já o vimos acontecer em outros lados e devemos o evitar e contrariar. Sim, pode parecer exagerado todo este artigo, mas é com estas pequenas decisões que lentamente nos entregamos a entidades que desconhecemos, enquanto cedemos por completo a nossa criatividade, obtendo nada em troca. Para pensar e tomar decisões existe o ser humano. Para executar e processar existem as máquinas.

Temos que criar um equilíbrio: é preciso mais controlo com melhor hardware
Novamente, repetindo, o código que nos ajuda a tirar melhores fotos é bom. Mas o código que altera as nossas fotos e decide por nós é mau. As câmaras dos telemóveis não têm que tentar ser profissionais, mas podem copiar alguns aspetos.
O software usado nos telemóveis pode ser usado para melhorar as fotos, para corrigir as falhas e deficiências de sensores pequenos e da falta de óticas avançadas (é usado plástico nas lentes dos telemóveis). Código pode ser usado para tentar fazer com que a câmara capture a imagem mais honesta à realidade possível. Mas o código não deve decidir o que é melhor ou mais bonito e não deve tomar decisões nem nos sugerir alterações. Toda essa esfera criativa deve estar por completo do nosso lado. E quando nós pedimos ajuda ao software, essa ajuda deve ser transparente e controlável por nós, e não apenas um princípio e fim, sem um meio onde possamos intervir.
A aplicação da câmara deve captar a realidade pelo que ela é, e não pelo que queremos que seja. A aplicação da câmara deve ser o mais honesta possível. Algoritmos como o novo do Pixel 3 que transforma a noite para o dia podem existir, mas não na câmara. Ao invés, esta edição de imagem deve ser implementada num editor de fotos, e não por defeito no momento de captura. Deve haver uma separação de funções e a aplicação da câmara deve ser para captar o mais honestamente possível, enquanto que edições às fotos ficam para outras aplicações secundárias.
Mas estas mudanças ao software são fáceis de implementar, são pequenas variáveis que rapidamente se alteram. As mudanças mais importantes, por outro lado, vão demorar mais tempo.
Para contrariar e equilibrar o software é necessário muita mais inovação no hardware. E isso demora tempo. As marcas têm que ultrapassar a ignorância de telemóveis finos e passar a desenhar telemóveis para pessoas normais usarem. Câmaras com maiores e melhores sensores devem ser desenvolvidas para que mais facilmente se implemente zoom ótico ou aberturas variáveis. Estas mecânicas só podem ser corretamente implementadas se tiverem o espaço necessário.
E, aliás, estas implementações nem seriam inovações pois já foram criadas há muitos anos atrás em outros telemóveis. O Nokia N86, lançado em 2009, tem uma abertura variável em 3 posições e o Galaxy S9 tem duas. O Asus ZenFone Zoom tem um zoom ótico de 3x. E, o Lumia 1020, o último grande telemóvel fotográfico da Nokia, tem um sensor com 41MP, estabilização ótica e um verdadeiro flash. Ou seja, em vários aspetos, o que se quer é um revisitar de inovações passadas.
Estas inovações não devem tentar copiar câmaras profissionais, pois isso seria insensato. Ao invés, devem servir para dar mais liberdade aos consumidores e estabelecer uma ponte entre telemóveis e câmaras profissionais, onde os telemóveis não tentam competir com equipamento profissional, mas sim dar uma boa base maleável a cada consumidor, um equilíbrio entre automático e manual.
Mas para conseguirmos este equilíbrio entre o software e hardware, é preciso acabar com os ciclos de lançamentos anuais. São absolutamente desnecessários e destrutivos para o consumidor. Não só são lançados telemóveis a cada ano com quase diferenças nenhumas, como também não são corretamente trabalhados e, consequentemente, são telemóveis desenhados para durar poucos anos. Idealmente, telemóveis seriam lançados a cada 2 ou 3 anos, onde existe tempo suficiente para trabalhar e melhorar existentes e novas tecnologias. Só assim se conseguiria o incentivo para desenvolver tecnologia a longo prazo, para o nosso benefício e não tretas derivativas sem utilidade nenhuma que são usadas apenas para vender. Nestes ciclos trianuais, os telemóveis seriam mais caros, mas também muito melhores e com uma longevidade muito maior.
É também de salientar a depressão que é ver a Nokia no seu atual estado. Em tempos, era ela que definia a tecnologia de câmaras nos telemóveis, tendo sido a pioneira em sensores maiores, aberturas variáveis, lentes, flashes e estabilização ótica. Mas agora é apenas mais uma marca a tentar colocar mais sensores nos seus telemóveis, para mascarar a quantidade de qualidade.