Um estrangeiro pode vir para Portugal usar o seu secador de cabelo, precisando de, no máximo, um adaptador para a tomada. Qualquer máquina de lavar a roupa funciona da mesma maneira em qualquer ponto do mundo: recebe roupa, gira, e devolve-a limpa. Um frigorífico, qualquer que seja a comida dentro dele, vai sempre fazer aquilo que foi desenhado para fazer: arrefecer alimentos. Um portátil pode aceder à internet em qualquer lado pois ela é igual em todo o lado (exceto, claro, em países autoritários, mas mesmo aí, existem alternativas).
Existe uma simplicidade nos mais bem desenhados objetos, uma confiança de nós sabermos que eles vão sempre funcionar quando precisarmos deles. Este bom design retira-nos stress para que possamos genuinamente relaxar onde moramos. É desta maneira, com uma baixa interação com estes produtos, que nós retiramos o máximo de proveito deles. Quando menos nos preocupamos com eles, melhor. Nenhum design consegue ser tão simples e intuitivo como o interruptor. Tem apenas duas posições e, logo pela sua forma, conseguimos ver em qual está e como facilmente mudar para a outra.
Com as casas inteligentes, não é assim tão fácil.
Sim, um secador inteligente continua a secar o cabelo quando ligado à tomada e uma máquina de lavar roupa continua a lavar roupa, desde que lhe introduzam a água e o detergente. E por mais internet que ponham num frigorífico, sem ela, ele continua a refrigerar. Mas para acederes às novas intercomunicações tens que ter uma aplicação para este grupo de aparelhos, mas para aquele já tens que ter outra. Esta uma lâmpada requer a versão mais recente de Android e esta chaleira só tem aplicação no iPhone. E se não ligares o frigorífico à internet, cada vez que o usares, ele vai-te chatear para o atualizares para tirares o máximo de proveito dele.
E começa o stress.
As nossas casas devem ser o conforto no início e final do dia, que nos permitem limpar as cabeças e desanuviar por algumas horas, sem grandes preocupações ou consequências. Mas se, de repente, tudo que se liga à eletricidade pede atenção, se tudo envia uma notificação, se tudo precisa ser atualizado de uma maneira diferente, se tudo não simplesmente está, como podemos nós estar descansados em casa?
De inteligentes, têm pouco
Considerem uma torradeira e o perigo de elas incendiarem alguma coisa. Algumas vezes, ligamos a torradeira, mas esquecemo-nos de a desligar, o que pode resultar em fogos. Adicionar notificações móveis à torradeira não resolveria o problema pois muitas vezes estamos longe do telemóvel ou simplesmente ignoramos as suas chamadas de atenção. Um sinal sonoro pode ser ineficaz se estivermos longe e não o ouvirmos.
Neste caso, o mais inteligente design é a torradeira se desligar após um uso único. Ela continua sempre ligada à tomada, mas não aquece, pois já completou o seu ciclo singular. E a menos que alguém indique outra utilização, ela não aquece.
Aqui, o mais inteligente design é um que retira e restringe o seu uso. Desta maneira, o nosso descuido e desatenção são tornados redundantes por estas medidas de segurança. Nós, seres humanos, temos um leque de atenção limitado. E isto não quer dizer que sejamos inferiores, burros ou diminutos. Não. Nós somos assim, com as nossas naturais limitações. Como tal, aquilo que nos rodeia não pode ocupar a nossa atenção com inúteis e desnecessárias chamadas. Aquilo que nos rodeia tem que ser inteligente e pausado no seu funcionamento para que nós nos possamos dedicar ao que verdadeiramente importa. O exemplo do automóvel é perfeito pois o seu uso requer constante atenção de várias variáveis. Como tal, ele tem que ser desenhado para que nos foquemos nessas variáveis e não no telemóvel ou no ar condicionado. Já por isso existem as leis que existem.
E este tipo de design genuinamente inteligente é invisível, não detetado por ninguém. Aquele design que sai da frente, que não impede, que não requer constante atenção. Aquele design que simplesmente funciona. Em contrapartida, as constantes chamadas de atenção via notificação na aplicação móvel aparentam ser “melhores”, pois dão-nos aquela dose hormonal da interação. A quantidade de funções também é muitas vezes interpretada como melhor, ignorando a sua verdadeira qualidade, algo que não é percetível na loja. Esta ilusão é enganadora e perigosa pois mantém-nos viciados naquilo que não importa. E os exemplos de más consequências desse exagerado uso de notificações já são sabidos.
Consideremos outro exemplo: o do garfo inteligente. Existem garfos que vibram quando detetam que o utilizador está a comer demasiado rápido, algo que é indesejável. Com a vibração, o garfo diz ao utilizador para abrandar. Mas a simplicidade acaba aqui, pois para obter todas as outras funcionalidades, é preciso instalar aplicações e as usar durante e depois de algumas refeições. Existem também os painéis de dados nas aplicações, retirados do garfo, que o utilizador pode usar para monitorizar o seu progresso.
Sim, ele pode ser usado sem uma ligação ao telemóvel ou portátil. Pode simplesmente ser ligado e usado com base nas suas vibrações. O que é bom (assumindo que o garfo funciona como publicitado). Mas todas as restantes funcionalidades parecem ser excessivas e invasivas, requerendo constante atenção a notificações, a mais um ecrã, a mais uma aplicação, a mais um painel de dados. Isto, por outro lado, não é bom. É uma demasiado fraturada experiência que requer demasiada atenção, algo que contribui ainda mais para o stress. Stress esse que aumenta o comer rápido da comida. Algo indesejável.
É então um bom e mau exemplo de design. Apenas com um botão, o garfo pode ser usado. Mas com as restantes funcionalidades, ele pode ser invasivo e distrator. Existe, no entanto, outro problema neste design que é uma remediação antes de uma prevenção. Comer rápido pode estar associado ao stress da pessoa. De um ponto de vista ideal, esse stress seria eliminado antes de ser necessário usar este garfo. Stress esse que é quase perene em toda a sociedade. Talvez este garfo seja melhor usado em cresces e escolas onde crianças são desde logo estimuladas a comer devagar, mantendo esse hábito pelo resto da vida.
Ah! E sempre sem esquecer a máquina de centenas de dólares que espremia sacos de sumo. Sim, esse produto existiu. E recebeu milhões em investimentos. Eventualmente, uma jornalista descobriu que podia simplesmente espremer os sacos com a mão, obtendo o mesmo resultado. A empresa acabou por falir. Neste caso, os erros são desde senso comum até design e economia básica.
Estes são apenas alguns dos muitos maus designs que existem. Muitos focam-se na cozinha pois é lá que temos a maior parte dos eletrodomésticos. Mas outro bom exemplo também podem ser as televisões “inteligentes” que são lentas, difíceis de usar e raramente atualizadas. Cada modelo com um sistema operativo e uma interface diferente. Em suma, não podemos comprar caríssimos objetos com base no aspeto e nas brochuras. Temos que pensar nas suas limitações e, principalmente, se precisamos mesmo deles ou não. Se vamos mesmo dar uso a todas aquelas funções ou não.
As casas do futuro não nos vão pertencer
Imaginem apenas alguns dispositivos por divisão com as suas respetivas aplicações, interfaces de utilizador, ecrãs de login, bases de dados distintas e atualizações individuais. Lidar com todos estes aparelhos “inteligentes” pode-se tornar rapidamente numa dor de cabeça. E por uma simples razão: eles não são verdadeiramente controlados por nós.
O outro grande problema além do mau design das casas inteligentes é que, com a atual tendência tecnológica, elas não nos vão pertencer por completo. Cada empresa usa um sistema diferente, fechado e centralizado. Pouquíssimas são as empresas que usam sistemas abertos, capazes de se ligarem a outros. E isto vai contra tudo ao qual estamos habituados. Nas nossas casas temos produtos de imensas marcas diferentes, e todos funcionam normalmente pois a única ligação entre eles somos nós. Não existem redes ou algoritmos, APIs ou cabos a ligar a máquina da roupa à lâmpada da garagem.
Mas com a Apple, a Google e a Amazon a quererem lutar pelo controlo total das nossas casas, o que está a acontecer é que cada uma está a construir o seu jardim fechado. Isto leva a que produtos tenham que ser desenvolvidos exclusivamente para cada um sistema. E se o sistema central mudar, o normal é esses produtos não poderem ser alterados para funcionarem com outros, requerendo toda uma compra nova.
Isto é uma continuação do trancar das grandes marcas: elas constroem enormes sistemas que criam uma dependência dos utilizadores. Como não existem ferramentas que facilmente permitam a transferência de dados, isto leva a que os utilizadores não saiam da plataforma e, se tentarem, é muito difícil. E como não é provável que se compre tudo do mesmo programa ou marca, é inevitável o utilizador ter que lidar com várias aplicações ao mesmo tempo.
Retomando os exemplos do início do artigo. Uma máquina de lavar roupa sempre lavará roupa. Mas uma máquina de lavar roupa ligada à internet com funções adicionais pode as perder, se não houver ligação à rede. Se passados alguns anos, houver uma atualização de software, algumas funções podem ser removidas pela marca. Outro exemplo é simplesmente remover o suporte online para a máquina e ela perder por completo as suas funções “inteligentes”.
Isto quer dizer que todos estes aparelhos inteligentes e as suas novas funcionalidades estão dependentes dos servidores de uma empresa, possivelmente no outro lado do mundo. Olhando para a atual paisagem de serviços online como videojogos, aplicações, colunas inteligentes ou outros aparelhos, começamos a ter um sentimento de ansiedade pois esse serviço online pode facilmente ser cancelado, deixando nas nossas mãos aparelhos com funcionalidades muito diferentes das prometidas. As razões podem ir desde a terem poucos clientes até a empresa ser comprada e absorvida por outra, ou mesmo entrado em falência.
Não só, mas com esta centralização, cada aparelho pode ser mudado do dia para a noite com uma atualização sem o utilizador saber, modificando por completo toda a sua utilização. Funcionalidades podem ser adicionadas ou eliminadas, interfaces recoloridas e problemas e incompatibilidades adicionados. Tudo isto contribui para o nível de stress de termos que lidar com inúmeras e diferentes interfaces e as suas inconstantes mudanças, todas fora do nosso controlo.
As soluções têm que vir do governo ou da UE
Quantas vezes usaste o frigorífico a pensar: o que faz falta aqui é um navegador da internet. Quantas vezes usaste uma torradeira e pensaste: e se ela tivesse uma coluna? Quantas vezes usaste uma máquina de lavar a roupa e pensaste: e se ela conseguisse ler emails? Temos que lutar contra o sensacionalismo das novas funções inúteis e vazias, adicionadas para apenas preencherem brochuras.
Já vivemos numa era stressante que chegue. Já passamos tempo suficiente em frente a ecrãs e precisamos mais do que nunca de nos afastar deles. E adicionar um a tudo dentro de casa não ajuda. Estas novas funções acabam por ser mais danificantes do que libertadoras. Acabamos por passar demasiado tempo a tentar perceber as instruções, a navegar aplicações, a atualizar produtos, à espera de ligações à internet. É suposto chegarmos a casa e relaxarmos e não aprendermos as novas funções da máquina da roupa. É suposto chegarmos a casa e nos afastarmos dos ecrãs dos telemóveis e não os usar ainda mais.
Uma casa ideal deve ser passiva, e não ativa. Ela deve funcionar normalmente sem precisar da nossa constante atenção. E como é ingénuo esperar que as gigantes tecnológicas mundiais de repente passem a pensar na boa saúde dos seus consumidores, governos têm que impor legislações que protejam a sanidade da casa.
Forçar uso de um padrão universal nas casas inteligentes
O mais óbvio passo é o de forçar o uso de um padrão universal para todas as casas, idealmente a nível europeu, para que a medida tenha mais peso. Estes padrões universais já existem, como o ZigBee ou o OCF. Infelizmente, estas tentativas de unificar padrões ainda são muito pequenas, com poucos usos concretos. Não são, no entanto, más ou piores que as ofertas das grandes marcas, Apple, Amazon ou Google, pois estas também ainda são muito jovens e com pouca flexibilidade.
Para manter o nosso controlo das nossas casas, torna-se importantíssimo criar padrões universais que assim o determinem, padrões descentralizados das grandes marcas que estejam sob o nosso controlo. Estes padrões devem ser versáteis e robustos o suficiente para suportar novos produtos ainda por inventar. Eles devem, também, incorporar um alto nível de versatilidade que permita ao utilizador criar ligações e dependências como o que acontece com o IFTTT (por exemplo, criar uma rotina matinal que liga a máquina do café, liga as luzes devagar e sobe os estores).
Um absolutamente importante aspeto a ter em consideração é a segurança pois, ao estarmos a ligar toda a casa à internet, é imperativo que essa ligação seja o mais segura e encriptada possível.
Adicionar ao router da casa um pequeno servidor
Uma possível solução para o problema da segurança e do controlo, é a inclusão de um pequeno servidor em cada casa inteligente. Hoje em dia existem pequenos servidores, baratos e versáteis o suficiente que podem ser incorporados no router já existente em muitas casas. Desta maneira, em vez de recorrermos a servidores das empresas colocados fora do país (e da sua jurisdição), temos o controlo da casa todo hospedado dentro dela. Assim cria-se um sistema completamente independente da internet e do exterior.
Existiria um pequeno sistema operativo nesse router/servidor que seria acessível por quem se ligasse a ele (telemóvel, tablet, portátil) que iria controlar tudo que se ligue a ele. Esse sistema operativo iria hospedar todo o controlo para que não estivesse dependente de nenhum fator exterior. Desta maneira também se pode totalmente cortar todo o acesso da casa à internet, aumentando a segurança (funcionaria apenas como rede local).
Este servidor também contribuiria para a descentralização pois qualquer empresa poderia programar o sistema operativo e interface de controlo. Assim os consumidores podem escolher qual servidor comprar para as suas necessidades, qual sistema operativo instalar e quais aparelhos inteligentes lhe ligar. Outra vantagem seria a simplicidade de utilização pois haveria apenas uma aplicação a usar com uma linguagem de design.
Finalmente, as atualizações de software estariam ao nosso controlo, sendo os aparelhos atualizados apenas quando quisermos, para evitarmos surpresas indesejadas na manhã seguinte.
Construir casas com uma infraestrutura de internet mais robusta
Mas para que os servidores funcionem corretamente, é preciso que eles consigam cobrir toda a casa com a sua rede local. Para isso, novas soluções também têm que ser implementadas. Da mesma maneira que as paredes das casas são já criadas com os canos para a água e os cabos para a eletricidade, também se devem passar a criar códigos de construção que permitam cobrir toda a casa com cabos internet. E não, repetidores sem fios wi-fi não chegam.
Com esta cobertura de cabos, eles não seriam apenas colocados ao lado das tomadas, mas também no teto, ao lado das lâmpadas. Por uma simples razão: é nesse ponto alto, no centro da divisão, que melhor fica instalada a fonte de wi-fi. Desta forma, repetidores com fio iriam-se ligar a esse cabo de internet no teto (que por sua vez está ligado ao router) e esconder-se atrás das lâmpadas, para que possam repetir o seu sinal sem grandes problemas. Desta maneira, cada dispositivo inteligente ligado à rede, pode ser usado em qualquer canto da casa, sem necessitar de um cabo ou ligação direta ao router.
Ensinar princípios éticos e morais a designers
Os cursos de design têm que passar a incluir disciplinas de ética e moral, para que se criem produtos mais conscientes do bem-estar do consumidor e não da obtenção de capital para a empresa. Hoje em dia, produtos são criados que são difíceis de reciclar, têm uma vida curtíssima, poluem demasiado e são difíceis de usar, contribuindo para o degradar mental dos utilizadores. E adicionar mais aplicações e notificações ao telemóvel não ajuda em nada. Os nossos telemóveis já são fontes de stress grandes o suficiente.
É imperativo que se passem a desenhar produtos com vista ao consumidor e não aos lucros da empresa. Para isso, os designers têm que ser educados nesse aspeto para que possam ser mais expansivos nas suas considerações, para que possam melhor considerar toda a vida do produto e como ele se encaixa na vida do consumidor, sem lhe danificar a sanidade mental. E esta ética não é nova. É um retorno a princípios já bem definidos e estabelecidos. Nós é que nos esquecemos deles.
Educar consumidores das suas verdadeiras necessidades e compras
E, no final, a nossa educação. Como nós não recebemos grande educação económica, temos tendência a cometer erros nas nossas compras. Somos inconsequentes e compramos o que não precisamos, compramos produtos baratos que nos saem caros ou simplesmente compramos o produto errado porque não pesquisamos o suficiente sobre ele.
Para evitar más compras (e futuras crises económicas), temos que ser mais corretos em como gastamos o nosso dinheiro, comprando apenas coisas que genuinamente precisamos, e que durem uma longa vida, sem que nos chateiem constantemente. Devemos também ser educados no pensamento crítico para que possamos melhor considerar aquilo que verdadeiramente precisamos e não aquilo que naquele momento desejamos.
O mau uso de tecnologia tem dominado as notícias ultimamente. É importante que nós saibamos identificar essa má tecnologia e a evitemos. A nossa saúde e o bem-estar da sociedade depende disso.