Na altura dos jornais, haviam os quiosques. Depois veio o rádio e a televisão. Nestes casos, os média estavam concentrados num sítio, eram fáceis de aceder e consumir. Sem o mínimo de atrito, podia-se comprar um jornal em vez do outro, mudar de estação de rádio ou de canal de televisão. Ou seja, qualquer que fosse a nossa escolha, podíamos a facilmente concretizar.
Com a internet, isso ainda é possível, mas com uma muito maior fracturação e fragmentação. Já não existe nenhum quiosque, nenhum grupo de canais, nenhuma facilidade de acesso de qualidade aos média. O que existe agora é um descontrolado e de baixa qualidade campo de resultados do motor de busca ou da rede social, onde notícias falsas são infeciosas e conteúdo sensacionalista reina.
Por algum motivo, os principais culpados do tão mau estado atual dos média são os próprios média que colocaram o seu conteúdo online de graça. Os jornais eram pagos pelo leitor e o rádio e a televisão subsidiados pelo estado. Os média que consumíamos eram pagos, de uma maneira ou de outra, por nós. Mas com a chegada da internet, os média abdicaram desse controlo e entregaram-no às redes de anúncios online. Por essa razão, os média deixaram de responder à integridade jornalística perante o leitor e passaram a responder aos caprichos de empresas tecnológicas focadas exclusivamente na criação de lucro.
Sim, havia alguma parcialidade nos média de ontem e sim, as pessoas também tinham um fraquinho pelo sensacionalismo vazio. Mas a internet e os lucros super catalisaram esse lado podre.
Reagir em vez de agir
As publicações de hoje reagem aos algoritmos e não à informação. Os ganhos obtidos da publicidade online são pequenos e cada vez menores, algo que contrasta com as em constante crescimento riquezas das maiores empresas de anúncios, Google e Facebook. As redes sociais, de que agora tanto dependem as publicações online, usam algoritmos obscuros e fechados para controlar aquilo que nós vemos (com tendência a extremismos). E como estas redes sociais comandam os olhos de milhares de milhões de pessoas na internet, cada vez que elas fazem alterações aos seus algoritmos, as páginas afetadas vêm o seu tráfego a flutuar radicalmente, fora do seu controlo. Como consequência, temos publicações a tentarem jogar e saturar os algoritmos para tentarem obter os últimos cêntimos.
Uma tendência em feliz decréscimo é a de deixar executivos de empresas tecnológicas “revolucionar os média”. Não revolucionaram nada e só pioraram a situação. As suas brilhantes ideias incluíam fazer vídeos que duram segundos onde o texto dos primeiros parágrafos do artigo é nos apresentado, com as mesmas duas imagens de fundo a repetirem. Continuamos a ter que ler, mas desta vez não precisamos de absorver a informação importante que demora minutos a ler. Não, agora lemos o que é sensacional e, se quisermos, abrimos o artigo para ler o resto. Isto levou a que as pessoas, obedecendo aos seus impulsos conformistas e preguiçosos, apenas vissem o vídeo e achem que já sabem o que precisam de saber. Hoje em dia, nas redes sociais, cerca de 60% das partilhas são de pessoas que nem leram o conteúdo.

Títulos passaram a ser criados para maximizar a otimização dos motores de busca, não para corretamente representar o artigo, mas para atrair atenção com base nas tendências online. O passo final desta busca de atenção sedenta é o seu completo reverso: criar artigos diretamente relacionados com essas tendências. Um ótimo e perfeito exemplo é o da NewsWeek, onde a seguir ao suicídio de Anthony Bourdain, artigos sensacionalistas e bombásticos foram criados para responder às buscas do Google e não ao respeito pela informação.
O uso e abuso de dados recolhidos de utilizadores levou à tribalização da internet, à híper especificação do alcance, e as publicações seguiram o mesmo caminho. Cada blogue, cada rúbrica, cada canal é agora feito para alimentar lixo constante e derivativo a um restrito e fanático canto da população, onde uma repetitiva câmara de eco é criada, tudo para maximizar a atenção e lucros dessa audiência. Considerem o exemplo dos sites online de televisão que constantemente publicam conteúdo a analisar todos os episódios, todas as mensagens, todas as imagens, todos os cantos e recantos, todos os rumores e fugas para que todos estejamos constantemente afixados ao interminável fluxo de pseudo argumentação criativa. Este constante esmiuçar de pequeníssimos detalhes, não só trivializa aquilo que devia ser especial, mas também nos mantém cegos ao plano geral, aos grandes passos.
Por um lado, esses executivos tecnológicos “revolucionários” ganharam: as publicações estão agora muito mais dependentes da tecnologia. Mas os média, e nós, perderam. Várias publicações que decidiram seguir os concelhos destes cegos egocêntricos estão agora nas ruas da amargura. A quantidade ganhou à qualidade, o clique venceu, a publicidade doma e o sensacionalismo reina. O jornalismo, a crítica e a contra-argumentação morreram, as câmaras de eco agravaram-se e a opinião da algibeira foi elevada a suma pontífice.
Não existe um consumo equilibrado de notícias. Artigos são criados rapidamente e publicados sem estarem acabados e fluxos enormes de alertas são nos forçados com as constantes notificações, por tudo e por nada. Somos constantemente enxurrados por algum artigo, por algum título, por algum excesso de violência ou de notícias horríveis. A nossa saúde mental está a degradar e este desmesurado consumo de má informação está a danificar o nosso estado emocional.
No entanto, ironicamente, é com a internet que os média podem ser melhores do que alguma vez foram, sem margem para dúvida.
Com um jornal, as notícias tinham sempre um atraso. Para algumas notícias isso é bom, dá mais tempo para as madurar, para outras não. Não podiam, também, fazer nada mais do que imprimir texto ou imagens, muito menos saber o que os leitores achavam do que liam. Com a televisão ou rádio, havia apenas um canal e um horário e a informação tinha que ser encaixada nele. Todas as pessoas tinham que ver ou ouvir o mesmo programa à mesma hora. O conteúdo não podia ser consumido livremente por nós, onde quiséssemos.
Com a internet e a tecnologia de hoje podemos servir qualquer informação que quisermos, da maneira que quisermos, como quisermos, a qualquer cliente no planeta. Temos inúmeras ferramentas para saber como esses leitores consumiram o nosso conteúdo e podemos usar isso para os melhor servir (e não abusivamente seguir para vender melhores anúncios). Como leitores, podemos consumir o conteúdo que queremos onde quisermos: ver vídeos na televisão, ouvir livros durante exercício ou ler artigos na praia. Podemos guardar para depois aquilo que é longo e podemos ler diferentes pontos de vista do mesmo assunto com apenas alguns cliques.
Como passamos então de uma paisagem fraturada para algo funcional?

A solução é simples: uma democrática união em torno da integridade
Para reaver o controlo, os média (nacionais e internacionais) deviam criar a sua plataforma online de distribuição e compra de conteúdo. Este “Quiosque Online” seria uma espécie de rede social onde cada publicação membro teria um voto e a organização seria feita democraticamente. Cada membro continuaria a ter a sua publicação online ou em papel, as suas contas nas redes sociais e os seus meios de distribuição. Mas esta plataforma permitiria uma consolidação de todos os média para que eles possam melhor controlar as suas audiências e rendimentos sem estarem à mercê de anúncios e redes sociais. Os utilizadores também beneficiariam de um acesso singular a toda a informação multimédia, sem serem manipulados por terceiros.
A sua interface seria similar a uma mistura entre um fluxo RSS e uma página curada, sempre sem o uso de algoritmos opacos e controladores. Sem o uso destes algoritmos, os utilizadores e as suas emoções não seriam artificialmente controlados. Não existiria uma captura abusiva de dados de utilização, à exceção das métricas básicas de uso do site como tempo na página, cliques, idade ou género. Aliás, esta captura de alguns dados seria controlada pelo utilizador e um alto nível de transparência seria necessário (os dados não seriam vendidos a entidades externas).
Considerem a experiência de uso como similar à do Facebook ou do Twitter, mas sem guardar dados abusivamente ou usar algoritmos obscuros que controlam o que vemos. Ou descontroladamente atropelar moralidades básicas em busca de lucros.
Existiria uma página inicial, igual para todos, onde o melhor conteúdo das publicações-membro seria selecionado por uma equipa humana. Desta maneira evitam-se câmaras de eco pois pode-se certificar que os leitores têm sempre argumentos e contra-argumentos de diferentes temas, apresentados logo de início.
De seguida existiria o conteúdo que nós escolhemos, seja por tema ou por publicação. Ao escolher um tema de interesse (tecnologia, ciclismo, política nacional, etc.), a plataforma vai buscar todas as notícias desse tema a todas as publicações. Algoritmos podem ser usados para aglomerar notícias similares do mesmo tema, mas sempre sem parcialidade ou segundas intenções. Eventualmente, com o crescer da plataforma, também se poderiam criar páginas de temas específicos curados por humanos, como a página inicial. Como bónus, boletins diários ou semanais poderiam ser enviados para o email, onde essas escolhas humanas de várias publicações podem ser usadas.

A plataforma em si pode ser usada como um leitor RSS otimizado, mas não serviria como substituto dos sites das respetivas publicações. Esses manter-se-iam a funcionar normalmente, assim como os seus restantes canais de difusão. Ao invés, quando o leitor quisesse ler ou ver algo, a página original da publicação seria aberta. Claro que, com o passar do tempo, esta integração pode melhorar para que não seja preciso abrir toda uma nova página e sair da plataforma. Por exemplo, páginas de artigos podem ser otimizados para apenas incluírem o conteúdo importante e não os restantes seguidores de dados e elementos da página, para que a sua abertura seja mais rápida, dentro da plataforma (a esmagadora maioria do código que descarregamos para ver uma página é secundário ao conteúdo principal).
Com este maior nível de controlo sobre a sua audiência, os membros da plataforma passariam a ter muito maiores responsabilidades. Hoje em dia, devido às contantes notificações em todos os nossos aparelhos, às notícias de última hora, aos vídeos de violência excessiva, estamos dessensibilizados, com as nossas cabeças excessivamente taxadas. As nossas emoções estão desreguladas e a nossa saúde mental sofre (assim como o resto das nossas vidas). Este “Quiosque Online” terá que ser mais pausado e regulado nas suas notificações, nas suas escolhas e na sua gestão de audiência. Sensacionalismos devem ser completamente eliminados. Títulos e artigos criados à pressa devem ser desconsiderados. Notificações podem ser mais inteligentes, apenas para os assuntos que nós seguimos e notícias verdadeiramente importantes. Em geral, esta plataforma deve promover um consumo saudável de notícias, oposto às redes sociais.
Todo o desenho e estrutura da própria plataforma deve ser igualmente honesto e transparente. Se o utilizador quer apagar a conta, esse processo deve ser fácil. A mudança de temas preferências tem que ser intuitiva. As notificações e emails que recebem também devem ser facilmente modificados. Os dados recolhidos devem ser claros e apenas os essenciais. Bom, claro e descritivo português deve ser usado para que todos os utilizadores compreendam o porquê de tudo na plataforma. As escolhas de conteúdo na página inicial devem ser justificadas, as opções bem claras e a navegação fluida. E o código usado nos sites ou nas aplicações deve ser leve e rápido, sem nenhuma linha desnecessária.
Como último bónus, sendo o conteúdo das publicações média o mais importante nas redes sociais, podemos pegar no melhor destas redes e ignorar o pior: spam, páginas de ódio, pessoas irritantes, selfies repetitivas e publicações a suplicarem por cliques. Sendo as caixas de comentários das redes sociais usadas para discutir tudo menos o artigo, estas não seriam incluídas neste “Quiosque Online”, pois apenas contribuem para a propagação de opiniões infundadas, e muitas vezes, ódio. Como tal, largando por completo o pior das redes sociais e mantendo o melhor, esta plataforma encontra-se na perfeita posição de criar uma muito melhor experiência de uso para todos os envolvidos.

Monetização, monetização, monetização
Com esta plataforma, a audiência passa a estar ligada diretamente às publicações, sem intermediários. Não há ninguém a subverter ou a tirar uma percentagem. Por esta razão, monetizar o conteúdo é muito mais fácil. Ao haver uma conta para todas as publicações, também se pode centralizar os pagamentos na plataforma, assim como o controlo dos anúncios que são publicados ou outros sistemas de monetização como doações. Como diferentes publicações são monetizadas de maneiras diferentes, a plataforma iria acomodar isso.
Subscrições podem ser todas compradas e controladas através da plataforma. Descontos podem ser criados para compras de várias subscrições de diferentes publicações ao mesmo tempo. Pode até ser criada uma subscrição especial para acesso livre a todos os artigos de todas as publicações na plataforma, com uma limitação do número máximo de artigos permitidos por mês. Os lucros destas subscrições são depois distribuídos pelas publicações de acordo com os artigos lidos. Outro modelo possível é um similar à plataforma Blendle, onde cada artigo tem um preço e o utilizador lê o que quer, pagando por cada item consumido.
Para publicações ainda novas que prefiram doações e anúncios, algo similar ao Patreon seria usado, onde donativos possam ser feitos facilmente às publicações pretendidas, esporádica ou regularmente. E como a plataforma iria controlar a sua enorme audiência, pode passar a exigir melhores preços para os anúncios nas suas páginas, assim como uma melhor qualidade dos mesmos. Desta maneira, utilizadores não são barrados do conteúdo por um vídeo em alto som sobre um carro novo.
A plataforma em si seria mantida tirando uma pequena percentagem de todas as transições efetuadas. Esta percentagem não seria para gerar lucros para a plataforma pois ela serve apenas como catalisador para as suas publicações membro. E sempre sem esquecer que, idealmente, esta plataforma seria universal, aberta a todas as línguas e publicações do mundo.
Esta plataforma pode dar muito mais controlo e estabilidade aos média, assim como responsabilidade
A internet permite-nos ver, ler, ouvir e participar em discussões que estão a acontecer pelo mundo fora. Mas não estamos a tirar o melhor partido disso. Inversamente, estamos a perder tempo com notificações berrantes e vazias ou conversas parvas sem rumo, mas cheias de ódio e raiva.
A plataforma pode não resolver nada quanto aos problemas que as publicações enfrentam hoje: falta de jornalismo e excesso de opiniões, falta de qualidade e excesso de quantidade. No entanto, sendo ela democrática, é a melhor oportunidade que os média alguma vez tiveram para se unirem e criarem o seu melhor futuro. Canais de televisão e rádios podem criar páginas para as suas emissões ao vivo onde partilham artigos relacionados. Publicações impressas podem ser compradas pela plataforma, com direito a uma versão digital. Publicações pagas e grátis podem-se complementar, evitando repetir artigos que não têm nenhuma diferenciação. Jornalistas vão poder investigar a longo prazo e não escrever à pressa.
Aliás, uma possível consequência desta plataforma é a criação de novas inclinações e identidades para os média existentes. Considerem como, hoje em dia, para certos eventos, todas as publicações criam um artigo similar. Estes artigos do mesmo assunto são quase todos iguais, mas que gastaram inúmeras horas de trabalho. Com esta plataforma, os leitores vão apenas ler um artigo entre vários iguais. Isto quer dizer que vai passar a existir um maior incentivo às publicações para elas abertamente assumirem diferentes inclinações e interpretações para se distanciarem e diferenciarem no meio da multidão. Isto já acontece agora, mas, infelizmente, esta inclinação é negada pois as publicações preferem aparentar ser centristas para atrair o máximo de clientes, mas reter apenas aqueles que reconhecem a sua inclinação, seja ela temática, moral, partidária ou idealista. Isto deve-se em parte a falta de integridade e à má economia dos média.
Idealmente, esta diferenciação ocorre naturalmente e de uma maneira transparente, onde artigos não são apenas escritos para criar câmaras de eco, onde o que os políticos dizem é repetido, sem qualquer contra-argumentação, mas sim tecer críticas e desconstruir o que foi dito, apontando as vantagens e desvantagens, dependendo da inclinação da publicação. Desta maneira, diferentes publicações podem criar valor para diferentes clientes, assegurando assim o seu canto no mercado. Sim, as publicações podem perder muitos clientes com esta aberta inclinação, mas podem ganhar muitos mais fiéis.
E sim, já existe o Nonio em Portugal. Mas essa plataforma é para apenas capturar dados dos utilizadores para poderem vender melhores anúncios. Aliás, quem ajudou a financiar esse projeto foi a Google, um mau presságio. Não só, mas pode piorar o efeito câmaras de eco ao servir apenas notícias de um tipo a cada utilizador. Como tal, o Nonio não resolve nenhum dos problemas de hoje e apenas coloca mais ênfase na perda de controlo dos rendimentos. É inegável que os média pelo mundo fora estão mal. Muito, muito mal. Mas, pode ser que com este aperto, eles tomem as atitudes acertadas. Ou reforcem as piores.
Da mesma maneira que o estado subsidia as infraestruturas de televisão e rádio, ele pode fazer o mesmo com esta plataforma. O estado pode pagar pela sua construção, disponibilizar o código fonte em modo aberto e deixar que a população não só aprenda com este projeto, mas contribua para ele. Desta maneira, a população sente um maior sentimento de segurança pois tem acesso ao funcionamento interno da plataforma. Engenheiros eletrónicos e designers podem também beneficiar desta abertura, num projeto tão grande. Eventualmente, com o crescimento da plataforma, os retornos em impostos mais do que a pagariam.
É, também, no interesse do estado e da população que os seus média sejam o melhor que possam ser, por razões imensamente óbvias. Nós, consumidores, temos o intransponível papel de não estimular os piores exemplos de média que vemos à nossa frente com os seus títulos sensacionalistas, artigos que apenas repetem os políticos sem os contestar, não pagar por aquilo que consumimos, mulheres nuas nos jornais, publicidades mascaradas de artigos, etc. Até porque, em parte, muita da culpa de termos maus média é nossa, pois fomos nós que consumimos toda a sujeira que nos serviram.
Estamos mal, mas podemos facilmente mudar para melhor.