Tecnologia

A hipocrisia de Silicon Valley é óbvia, mas a nossa não

Nós compramos lixo que polui, as empresas vendem lixo que polui. O problema começa e acaba em nós.

Com a retirada dos EUA do Acordo Climático de Paris pelas mãos de Donald Trump, as empresas de Silicon Valley (entre outras) têm vindo a demonstrar o seu descontentamento com a decisão da administração, apoiando a permanência no acordo. No entanto, as ações delas contam outra história, assim como as nossas.

Recentemente, um número de empresas de Silicon Valley, assim como outras da área das tecnologias, saíram em defesa da permanência dos EUA no Acordo Climático de Paris, criticando a saída como desapontante, má para o ambiente, para o planeta e para as empresas. Tim Cook, CEO da Apple, chegou a tentar convencer, via telefónica, Trump a permanecer no acordo, mas sem sucesso. Mas Silicon Valley tem tido uma relação com a Casa Branca muito variável.

Pré eleição, o descontentamento pelas propostas de Trump era quase uníssono nos círculos das empresas tecnológicas (que são agora as maiores dum mundo, à frente das do petróleo). Pós-eleição e todos os CEOs e representantes das empresas que muito criticaram Trump sentam-se à mesa com ele para discutir negócios. Ainda mais contrariante foi a quantidade de dinheiro que muitas empresas críticas de Trump deram à sua inauguração.

Muitos dos críticos de Trump passaram a integrar equipas de aconselhamento da administração como Elon Musk (Tesla, SpaceX) e Bob Iger (Disney). Ambos, dos últimos restantes, saíram das respetivas equipas em resposta à saída dos EUA do acordo de Paris.

Mas tudo isto, tendo em conta a natureza das grandes empresas e do seu principal objetivo de obter mais lucros para satisfazer os investidores, é relativamente normal. O principal ponto de crítica à hipocrisia destas empresas está nos produtos físicos que elas criam, na longevidade pré-programada e nas matérias primas necessárias para o conseguir, enquanto afirmam lutar pelo ambiente.

A maior parte dos lucros das atuais empresas tecnológicas centra-se nos serviços de software, nas subscrições, nos anúncios, na aglomeração de enormes quantidades de dados. Obter lucros a partir de hardware é muito mais complicado (sendo a Apple a maior a faze-lo) e o que muitas vezes acontece é as empresas venderem o equipamento físico a custo, obtendo lucros com as vendas de software. Mas este hardware a baixo preço é o que mais negativamente impacta os trabalhadores que o montam e o ambiente.

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O impacto ambiental de mau design

A principal ofensa começa e acaba com o atual ubíquo telemóvel. Cada vez mais, a população mundial se liga à internet por estes dispositivos. E cada vez mais eles são vistos como descartáveis objetos. Esta perceção é perigosa e é estimulada pelas empresas que os criam e pelas pessoas que os compram.

Primeiro vem o atual prevalente péssimo design de quase todas as principais marcas no mercado. Bom design assenta sobre o equilíbrio entre dois pontos: forma e função. Forma representa o aspeto visual e o quão apelativo é, função a utilidade prática que podemos retirar do objeto. No entanto, apesar disto, todas as marcas focam-se apenas na forma e raramente na função. Consideremos o novo Galaxy S8, com ecrã que curva pelas laterais. Ecrã esse, ainda feito de muito quebradiço vidro. Sendo assim, logo de partida, temos um enorme problema de integridade estrutural: à mínima queda deste telemóvel, a probabilidade do ecrã se estilhaçar é enorme. Mas o S8 não é o único: qualquer iPhone, qualquer Sony Xperia Z, qualquer LG ou HTC de gama alta, todos pecam pelo mesmo problema de designs extremamente frágeis que requerem imediatamente o uso de uma capa protetora. E se é preciso comprar um acessório imediatamente depois da compra do telemóvel para o poder usar confortavelmente, então falharam no design. Não é requerido a quem compra um carro, comprar um para-brisas. Já vem incluído no carro. Mas para podermos usar o telemóvel confortavelmente no nosso dia-a-dia temos que comprar um capa para evitar que qualquer queda se torne numa enorme despesa.

O que tem isto a ver com o ambiente? Bom, com designs quebradiços e frágeis, a destruição do objeto é muito mais provável. O que requer uma de duas ações: reparação ou substituição. Qualquer uma destas duas opções vai implicar custos de matéria prima para gerar ou as peças de reparação ou um novo telemóvel. Se o design tivesse sido mais cuidadosamente trabalhado, existiriam redundâncias que impediriam um tão negativo resultado a cada pequena queda.

Como se não bastasse, o software que a cada ano é renovado, é feito de acordo com a nova e apenas a nova iteração do dispositivo. Ou seja, criam o sistema operativo para funcionar melhor com o hardware de hoje, não com o hardware de ontem ou de amanhã. Consequentemente, telemóveis começam a ficar progressivamente mais lentos e desatualizados, pesados não só pelo sistema operativo mas também por aplicações mal programadas, morosas e densas que de muito processamento necessitam (a aplicação do Facebook é a principal culpada).

Todos estes problemas em conjunto com campanhas de marketing de exagerados adjetivos e hipérboles, criam um ambiente de desprezo pelo ainda útil telemóvel de 2 anos, marcando-o como velho e descartável.

Mas a cereja no topo do bolo é que as próprias marcas reconhecem esta fugaz prática e admitem-na, com sorrisos. Num evento em Março de 2016, Phil Schiller (Apple) disse que existem cerca de 600 milhões de máquinas com Windows que têm mais de 5 anos e que isso é “muito triste, muito mesmo”. Não tardaram a chover as críticas.

Mas o maior problema não são os ecrãs, são os circuitos integrados

Ecrãs de vidro e chassis metálicos são (relativamente) simples de reparar (assumindo que se quebrou apenas o vidro e não o próprio ecrã). O principal problema ambiental de toda esta prática de substituição casual de telemóveis a cada 2 ou 3 anos é a indústria mineira que mina os minérios raros encontrados em todos os circuitos integrados de qualquer dispositivo eletrónico.

Estes minérios raros chamam-se raros, não porque existem em pequenas quantidades no planeta, mas porque se encontram todos espalhados em pequenas quantidades pelo planeta. Isto faz com que, para os retirar do solo, seja necessário cavar uma enorme área para obter uma pequena quantidade de minério. Este tipo de minas existem principalmente nos continentes africanos e asiáticos, onde as regulações ambientais são muito mais laxas e permitem a atividade sem grandes impasses. No caso africano, países como o Congo alimentam a sua guerra civil com recurso às vendas destas minas (que funcionam com trabalho infantil, escravo).

O problema com estes minérios não acaba aqui. Não só são difíceis de minar e causam enormes danos ambientais, como também são notoriamente difíceis de reciclar. Até ao momento ainda não existe nenhuma tecnologia adequada para separar todos (ou sequer alguns) minérios existentes num circuito integrado (CI). Uma vez construídos e unificados, torna-se muitíssimo difícil separar circuitos integrados para poderemos reutilizar os minérios novamente.

E é este o maior problema ambiental da nossa atual utilização de telemóveis. Não os vidro partidos, não o chassis amassado mas sim todos os CI no interior do telemóvel. Circuitos esses que são desenhados para funcionar apenas com uma versão de um sistema operativo, de uma maneira pouco maleável e, como tal, apenas bom para um par de anos.

Isto tudo para não falar nas baterias, cuja atual tecnologia, em pouco difere da de à 100 anos atrás onde se substitui um químico por outro mas mantém-se a toxicidade (e explosividade). Baterias essas que têm um tempo de vida útil bastante curto (2, 3 anos, dependendo da utilização). Mas, devido aos designs fechados atuais de quase todos os telemóveis, não podem ser facilmente substituíveis. Requerem lojas de técnicos especializados pois muitas vezes, não só os designs são fechados, como desnecessariamente complexos para evitar que utilizadores mexam no interior do telemóvel. Novamente, incentivando a compra de um novo telemóvel. Minas de lítio (o atual principal componente das baterias) também têm os seus respetivos problemas ambientais e de trabalho precário.

Placa de circuitos

Enormes lucros, nenhuma investigação a longo prazo

Infelizmente, muitos destes problemas poderiam ou ser evitados ou pelo menos mitigados se estas grandes empresas dedicassem uma pequena parte dos seus imensos lucros a investigação e desenvolvimento de soluções para estes problemas. Ao invés, usam esses orçamentos para procurar novas avenidas de dinheiro, novos mercados e novos produtos. Raramente se vê investigação do sector privado em problemas como tecnologia de baterias. Aliás, raramente se vê verdadeira investigação no sector privado, de qualquer área ou problema.

Verdadeira investigação científica demora vários anos e requer muito investimento, com potencialmente nenhum retorno. E isso faz com que apenas estados e governos possam financiar tais feitos. Mas hoje em dia, empresas como a Apple que têm mais de 240 mil milhões de dólares em dinheiro espalhado pelo mundo fora têm mais do que margem de manobra para fazer estes investimentos. Mas não o fazem. Rumores mais recentes indicam que estão a investir dinheiro em realidade virtual e num projeto automóvel (qualquer que ele seja, ainda muito incerto). Não há nenhuma menção em investigação de tecnologia de baterias, reciclagem de circuitos integrados ou aumento de longevidade de tecnologias.

A Apple não é a única. Mas é o mais crasso e óbvio caso, com mais dinheiro e menos investigação. Um outro exemplo é a arrogante atitude de Mark Zuckerberg (Facebook) em afirmar que com um investimento de 3 mil milhões de dólares pretende acabar com todas as doenças. Fácil. Não só demonstra um completo desligar da realidade como uma arrogância enorme em achar que com um pouco de dinheiro vai conseguir fazer o que milhares de investigadores durante décadas não conseguiram. Para não ficar atrás, Calico, uma subsidiária da Alphabet (dona da Google) tem o objetivo de combater o envelhecimento e prolongar a vida humana. Verily é outra das subsidiárias da Alphabet dedicada às ciências da vida. Mas ainda existe uma terceira subsidiária da Alphabet que faz investigação: a X. Esta subsidiária foca-se em projetos mais exotéricos como veículos autónomos ou internet via balões.

Resumindo, apenas questões e problemas mais chamativos estão a ser atentados. Os verdadeiros, chatos, morosos, lentos e importantes problemas não.

O consumidor também partilha a culpa

No entanto, apesar de todas estas críticas às estruturas e procedimentos destas empresas, existe uma mais importante, primeira crítica a fazer. A nós, os consumidores, que alimentamos estas práticas.

Sendo nós as principais fontes de dinheiro destas empresas, é a nossa responsabilidade de tomarmos decisões mais conscientes. Devemos considerar se precisamos mesmo de um telemóvel novo, se não podemos formatar o atual e começar de novo ou simplesmente substituir a bateria. Devemos ter cuidado com o telemóvel que temos hoje e não o deixar cair de propósito para termos desculpa de comprar um novo.

No final de contas, o poder está nas nossas mãos pois somos nós o mercado e somos nós que decidimos o que compramos. Se tomarmos más decisões baseadas apenas no aspeto exterior do que queremos, não podemos, então, criticar estas empresas como “todas iguais”. Porque no final de contas, também nós o somos, se compactuarmos com eles.