Este artigo é adaptado de um excerto de outro maior – Hoje, a tecnologia usa-te em vez de ser usada – do capítulo ”Acessórios caros sem uso aparente”, com novo conteúdo.
Na era do capitalismo desgovernado, a busca por mais lucro é singular e exclusiva. Não existem outras preocupações para quem vende. E quando empresas aparentam estar do nosso lado, é tudo conveniência, que facilita ainda mais a extração de lucros. Empresas que verdadeiramente se preocupam com o consumidor e que vendem bons produtos para serem usados e não para serem descartados são escassas. Agora, coloca-se eletrónica em tudo que é canto e argumenta-se que é todo um produto novo, reinventado com Inteligências artificiais, Internet das Coisas ou uma outra treta qualquer.
A realidade, infelizmente, é muito diferente da máscara que nos é vendida. Soluções são inventadas para problemas que não existem pois é mais fácil vender gratificação instantânea do que sustentabilidade. Os imensos problemas que existiam continuam a existir, só que agora rodeados de lixo desnecessário.
Uma recente e particularmente perigosa moda é a dos relógios “inteligentes”, onde a função de relógio é quase inutilizada. Esta tecnologia é o perfeito encapsulamento de tudo que está errado com a tecnologia de consumo dos dias de hoje: aquilo que não precisava ser modificado foi corrompido com tecnologia desnecessária, mal implementada, que resolve problema nenhum e só traz ainda mais consequências negativas às nossas já muito desreguladas vidas.
Estes relógios não foram criados porque alguém precisa deles, mas porque as vendas dos restantes produtos estavam a estagnar, e alguma nova fonte de mais lucros foi necessária. Estes relógios não adicionam nada de novo e funcionam meramente como intermediários ao telemóvel, que é sempre indispensável. São usados para te servirem novas biometrias do teu corpo: os teus passos, as calorias queimadas, os batimentos cardíacos e agora, com o novo Apple Watch, até eletrocardiogramas. Mas, muito disto é treta inventada ou então informação que não precisas nem devias ter. Esta tecnologia não serve nenhuma necessidade, ela induz o seu uso.
Métricas que ninguém precisa
Primeiro, os passos contados são uma medição incorreta, estando regularmente errada. Pior, não é regular. Ou seja, para o mesmo exercício, podes ter leituras muito diferentes a cada dia em diferentes acessórios. Não existe uma linha base estável. Ainda mais, o objetivo dos 10 000 passos por dia é uma meta inventada por uns japoneses sem o mínimo de fundamento científico. É apenas um valor arbitrário que soa bem. Ou seja, o relógio é que te induz o uso, uso esse que não faz sentido.
Medir calorias queimadas ainda mais ignorante é pois existem vários corpos humanos diferentes que reagem de maneiras diferentes a diferentes alimentos e exercícios. Não existe maneira nenhuma destes relógios saberem mesmo quantas calorias queimaste. É uma medição extremamente instável. Consequentemente, tomas decisões erradas quanto à tua alimentação com base em más leituras.
Mas de igual modo preocupante são as medições de biometrias reais como o batimento cardíaco ou o eletrocardiograma.
Muitos destes relógios ou pulseiras medem constantemente o teu batimento cardíaco durante o dia. O problema aqui é que como o sensor precisa estar próximo da tua pele para a ler corretamente, com o andar e mexer do dia-a-dia, esse sensor raramente está sempre perto da pele. Isto leva a que o sensor faça leituras erradas durante o dia e te dê informação médica incorreta e perigosa. Quanto aos eletrocardiogramas gerados pelos novos relógios de pulso, ainda é difícil dizer se são bons ou não visto ainda serem novos no mercado.
Independentemente, um problema persiste: mesmo que estas medições sejam corretas, as pessoas comuns não as deviam ter. Como a esmagadora maioria da população mundial não tem o curso de medicina, não sabem interpretar estes valores. O corpo humano oscila, varia, não é constante. Como tal, medições das suas métricas variam. Isto leva a que pessoas ganhem medos ou inventem problemas nos resultados obtidos quando na realidade não existem.
Este constante fluxo de informação médica induz nas pessoas uma ansiedade de atingir certos números arbitrários, inventados. Ansiedade essa que é agravada pela imprecisão destas leituras. Sim, alguns problemas cardíacos podem ser diagnosticados graças a estes sensores, mas na maioria das pessoas vai gerar apenas falsos positivos e obsessões com métricas erradas. Esta imoral ética de design onde toda a informação te é dada, sem controlo ou explicação, sem barreiras, leva a ansiedades e compulsões, obsessões por quantificações erradas na saúde. E isso é mau.
Tu acabas por ser manipulado por estes sensores porque empresas querem-te vender a moda mais recente, sendo ela necessária ou não.
Precisamos de menos e melhor tecnologia e não de mais e pior
Como se o excesso de informação desnecessária não fosse mau que chegue, ele é agravado pelo excesso de notificações que ninguém precisa. Um dos argumentos usados para vender alguns destes relógios é que podem ser usados como substitutos dos telemóveis, contendo os essenciais. Este argumento está, no entanto, repleto de buracos e contradições.
Consideremos o exemplo de usar um relógio inteligente durante uma corrida ou outra atividade no exterior. O argumento usado por algumas campanhas de publicidade é que podes te manter ligado ao mundo, mas com o telemóvel em casa. Mas considerem agora o objetivo de se realizar alguma atividade no exterior. É para se relaxar, para se fazer exercício, para estarmos mais ligados ao mundo que nos rodeia e não a notificações doentias do que não nos interessa. Nós realizamos estas atividades no exterior precisamente para nos desligarmos do longínquo que nos destrói e para nos ligarmos ao que nos rodeia que importa.
Não só, mas considerem também a interface de utilizador destes relógios: são ecrãs minúsculos pouco visíveis em luz solar. Dificilmente se pode substituir um telemóvel com tal diminuta interface sem haverem compromissos. Mas, mesmo assim, tendo em conta todas estas limitações, programadores continuam a teimar em tentarem esmagar o máximo de funções nestes ecrãs. Isto resulta numa cómica utilização destes relógios, onde as pessoas perdem imenso tempo a tentarem executar a mais básica das funções que num telemóvel seria rápida e banal. Isto acontece porque, como estes relógios não têm nenhuma genuína utilidade, outras têm que ser inventadas, onde aplicações são instaladas nestes relógios, não porque são úteis, mas apenas porque “sim”.
Não só, muitos destes relógios precisam de um telemóvel para serem usados em pleno, para desbloquear todas as suas funções. Como tal, é inevitável teres que usar um telemóvel (com um sistema operativo compatível), mais cedo ou mais tarde. Este apenas serve como um intermediário desnecessário, que te faz perder tempo, um passo extra sem razão para existir, um entrave que inevitavelmente vai ter que ser substituído pelo telemóvel. Não existe nada que um relógio inteligente faça que um banal smartphone não faça também.
No final de contas, algo que devia ser uma destilação do que é mais importante, ou um complemento, passa a ser uma tentativa em forçar uma repetição do telemóvel num relógio de pulso. Esta repetição forçada em conjunto com as limitações dos relógios, faz com que aquilo que devia ser mais simples e menos obstrutivo passa a ser ainda mais complicado e inferior. Perdemos a versatilidade de um ecrã grande mas mantemos toda a distração, agora com ainda mais notificações em mais sítios, e mais difíceis de manipular. E isto faz com que nenhuma atividade que possas fazer esteja livre de tecnologia e das atitudes predatórias das aplicações que te querem sugar a atenção e dados.
Como particular insulto está a maneira como a Apple copia desavergonhadamente todo o design de produto do Dieter Rams, mas não os seus princípios de bom design (basta ver os princípios 2, 5 e 7). O próprio está farto de ver tantos produtos desnecessários a inundar as nossas vidas.
É incrível como as campanhas de publicidade destes “relógios” se conseguem contradizer na mesma frase e, mesmo assim, nós continuamos a comprar isto, ativamente destruindo a nossa sanidade mental (e poluindo o ambiente).
Existem boas alternativas, bem desenhadas
Mas nem todos os relógios inteligentes são desnecessários, inventados apenas para vender. Se o objetivo é obter biometrias como o batimento cardíaco, existem vários relógios com essa função, mas implementada de uma maneira não invasiva. Alguns relógios para desporto têm todas as funções cronológicas básicas, assim como leitores de batimentos cardíacos, mas com uma implementação muito menos invasiva. O teu batimento cardíaco apenas é lido quando tu queres e não constantemente (potencialmente gerando valores errados). Não só, mas podes genuinamente usar estes relógios sem nenhum telemóvel e em frente a luz solar. As suas baterias duram muito mais que apenas um dia (os relógios inteligentes ás vezes nem um dia duram) e não são usados como mais uma fonte de distrações, gerando ainda mais notificações.
Se o que te interessa é apenas ouvir música, existem vários leitores de música pequeníssimos, capazes de serem usados em corridas sem te obstruírem. Alguns auscultadores até têm o leitor integrado no próprio fio. E se comunicações básicas e essenciais é o teu objetivo, então existem vários telemóveis de 50€ ou menos, capazes de efetuarem chamadas, SMSs e até os básicos de email e navegação na internet.
Resumidamente, a utilidade de relógios inteligentes é única e exclusivamente dizer que tens dinheiro para gastar. Da mesma maneira que muitos telemóveis caros são comprados não porque são precisos, mas sim porque são usados como objetos de estatuto, estes relógios inteligentes ocupam uma posição similar, não de necessidade, mas de opulência. Algo caro, para ser visto, mas quase nunca usado. Prova disso são as baixas vendas destes acessórios.
Precisamos de menos gratificação instantânea e de mais pensamento a longo prazo
Tecnologia invasiva e abusiva é agora o normal nas nossas vidas, infelizmente. Por defeito, a eletrónica invade-te com notificações de tudo e mais alguma coisa. Sempre que compras um telemóvel novo, as notificações de som, vibração e ecrã estão ligadas por defeito. Qualquer aplicação menos escrupulosa vai te invadir com notificações, e obrigar-te a as desativar. Com os relógios inteligentes essas notificações estão agora presentes no teu pulso, ainda mais inevitáveis.
De um ponto de vista sustentável e saudável, o oposto devia acontecer. As notificações de aplicações secundárias deviam vir desligadas por defeito, estando apenas as notificações mais importantes de aplicações de comunicações ligadas. Por cada notificação, por cada ecrã ligado, distraímo-nos a nós próprios e aos que nos rodeiam (já por isso muitos professores banem todos os ecrãs, computadores portáteis incluídos, das suas aulas). Estudos já o provaram, que quando estamos no meio de um pensamento ou raciocínio, estas notificações quebram o pensamento e são necessários vários minutos para voltarmos ao normal. Agora imaginem essas notificações diretamente no vosso pulso, enquanto apresentam algo, e vocês se distraem, consequentemente distraindo aqueles que vos rodeiam. Uma cadeia de distrações e desperdício mental (outros estudos provam que mera presença de um telemóvel no campo de visão já é suficiente para ficarmos mais ignorantes). Cada vez mais estamos a degradar a nossa qualidade de vida, não só individual como societal. O impacto ambiental é, também, imenso, assim como a exploração laboral usada para construir estes produtos.
De um ponto de vista financeiro, esta tecnologia supérflua também é muito destrutiva. Seria de esperar que quem compre algo por 200 ou 400 euros, preste atenção ao que está a fazer e faça a devida investigação à utilidade do produto. Mas muita gente não o faz, e quando faz, faz pelas razões erradas, procurando o “melhor” em papel, mas não o melhor para si, para as suas necessidades. Vários economistas já alertaram para a nossa falta de educação financeira, onde no nosso dia-a-dia cometemos imensos pequenos erros que no final do mês amontoam-se rapidamente. Para piorar ainda mais a questão financeira, existem os lançamentos anuais que quase nada adicionam ou melhoram, mas que rapidamente desatualizam modelos mais antigos. Esta cíclica e repetitiva atualização destes produtos apenas serve para melhorar as vendas das empresas, piorando o ambiente e as nossas carteiras. Uma atitude mais saudável seriam lançamentos a cada 3 anos, onde verdadeiras e úteis inovações poderiam ser criadas e implementadas, em vez de mudar ligeiramente algo já existente e afirmar que isso é “revolucionário”.
Tecnologia feita apenas para vender nunca deveria existir e a que temos deveria durar muito mais tempo, para nos ajudar em vez de nos atrasar e impedir. Não precisamos de mais tecnologia, precisamos de menos e melhor. As empresas precisam de mais ética e moral, enquanto que os consumidores precisam de mais educação.